Gire levemente a chave. Pressione a embreagem. Direcione a alavanca ao seu lado para cima. Isso. Preparado? Cinco, quatro, três, dois, um: agora acelera. Eduque seus pés, este é o segredo. A liberdade está em seus pés.
Essa foi a sensação que tive, quando, pela primeira vez, pude assentar minhas nádegas na poltrona do motorista e protagonizar o comando da máquina de quatro rodas. Mas, não me deixaram ir direto à Saveiro. Tive que primeiro fazer um teste: maldita carreta agrícola. Conquistei o primeiro lugar entre três candidatas à vaga: eu, o barranco e a estrada de chão. Mas passei e parti rumo a um veículo de carne e osso. Dei uma volta de 500 metros. Foi o suficiente para Deus existir em minha vida. Êxtase!Sonho! Desde pequena sou apaixonada por carros, mas ninguém em 19 anos de vida se arriscou a dividir comigo a magia de se dirigir um automóvel.
Mas minha alegria durou pouco. Gostaria de ter continuado dirigindo, mas tudo acabou! Frustrei-me um pouco pela demora em repetir a atividade. Então, um Corsel, escancaradamente aos pedaços, passou na minha rua. Depois, um cidadão, ao passar perto de onde estava me fez rir, por estar exageradamente próximo ao volante, concentrado na metodologia da direção. Concluí: dirigir é um ato mecanicista, onde o homem se subjuga à máquina para se locomover. É um crime contra a liberdade humana. Depois que se familiariza com o veículo transforma-se em verdadeiro escravo; não pensa; apenas guia uma estrutura mecânica.
Bom, depois dessa concepção frustrante, sabem onde desembarquei? Em uma viagem histórica e científica. Imaginem: através de uma crítica a uma invenção, fiz, paradoxalmente, outra descoberta. Diagnostiquei: a ideia da criação dos carros só pode ter surgido na Idade Média, o mais longo período histórico de nossa civilização. Afinal, nesse período havia uma ordem predominante que avassalava a população. A Igreja e os pensamentos religiosos dominavam a cultura local. A vida estava restrita aos procedimentos pré-ensaiados pelas ordens religiosas. Educação, política e sociedade estavam intrincadas e se guiavam pelas placas de comportamento estabelecidas por essa ordem. Uma viagem por um caminho desconhecido onde não se sabia ao certo qual BR seguir. Só se sabia de acordo com o instrutor Santo Augustinho, que o fim da viagem era o céu, e perseguia-se a ideia que esse fim estava muito próximo. Concepções evidentes no filme O nome da Rosa, adaptado do romance com o mesmo título, de Umberto Eco. Confira o trailer:
A ideia da subjugação vem da Idade Média. Desta forma, a ideia do carro também. Bem, para investigar melhor, fui pedir ajuda. Dá um help aí Dr. Google...Bingo: descobri que foi na Idade Média que surgiu a primeira roda com aros. Não me enganei: nesse período surgia sim, tanto a lógica ideológica do dirigir, quanto à lógica do aspecto físico do conjunto da obra.
Bom, agora eu vou fazer uma outra viagem. Só pelo fato de lá ter surgido o princípio da minha felicidade, já gostei. Virei fã número 1 da baixa, da alta e de qualquer estatura da Idade Média. Fico imaginando como seria minha vida se eu vivesse lá. Pra começar eu gostaria de pertencer ao clero, classe dominante que detinham a maior parte das propriedades de terras. Não gostaria nada de ficar doente, porque não tinha médico e acreditava-se que isso era uma consequência de um pecado. Minha vida econômica não será muito diferente que é a de hoje, a base de subsistência. Minha rotina iria ser uma aventura diária, afinal, viveria escambiando para me alimentar e viveria fugindo das guerras e das invasões. O pior inimigo da minha sociedade seriam os bárbaros e não a inflação ou o governo Bush. É verdade que eu não teria muita liberdade de criação de literatura, nem de uma crônica como essa. Na verdade não teria liberdade para nada. Mas as vezes a falta de liberdade nos transporta para outras ruas, cidades, estados sem gastarmos a sola dos nossos sapatos, basta ter simplesmente gasolina.
Agora eu entendo os medievais. Eles eram felizes. Como também serei eu sendo vassala. Navegando entre o inferno e o paraíso, eu andarei, andarei e atropelarei qualquer cruzada que se atravessar na minha história e destruir meu sistema. Faz parte ser escrava. E é maravilhosa a ilusão: o vento no meu rosto afirma que sou livre, mas meus pés, minhas mãos, minha postura, gritam que não. Mas dirigir será minha válvula de escape, a minha, não do meu carro, ok? Encerro essa crônica com uma promessa. Ressuscitarei Dante Alighieri, em Divina Comédia, dizendo, na próxima vez que tiver a oportunidade de dirigir “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais”.
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